Douglas Garcia é ator, produtor e mantém um blog na internet, onde escreve seus pensamentos em forma de poesia. Atualmente, vive o personagem Peter no musical “Segredos Sussurrados ao Silêncio da Chuva”, que fará apresentação única em Campinas, São Paulo, no próximo dia 23.
Conversamos um pouco com o artista sobre este projeto, carreira, planos futuros e muito mais. Confira:
Oniverso Abominável: Quando você sentiu que realmente tinha afinidade com as artes?
Douglas Garcia: Eu acho que tiveram dois momentos. Eu acho que teve o momento quando eu me senti na vida, com certeza foi quando eu era criança. foi engraçado porque criança é muito influenciável, isso é normal, enfim, a gente sente uma coisa de querer ser aquilo que está vendo na televisão, etc. Mas eu comecei escrevendo. Fiz teatro um pouco antes, coral, mas eu acho que a minha afinidade de fato, quando eu falei “gente, é isso que eu quero tentar fazer na vida!”, foi quando eu me peguei escrevendo.
Quando eu estava com uns 9, 10 anos, até mais ou menos a pré-adolescência, eu ficava muito tempo depois de aula sozinho, lendo, e aí eu comecei a escrever histórias e sacar que eu gostava daquilo. Que eu gostava não só de escrever histórias, mas também o que eu fui entender depois que era poesia. Não sei se eu ainda tenho essas anotações, mas era algo que me transportava para outro lugar. Aí eu fui sacando o que era arte para mim. Com o tempo, eu fui tendo muitas discussões internas sobre o que é arte, minha afinidade, que a gente tem que ser mais adepto da arte na gente do que a gente na arte, necessariamente. Que a gente da arte depende dos outros. Mas a gente tem que lembrar que tem essa faísca. Essa discussão toda ainda existe e está em aberto.
Mas foi em 2015, um período em que eu fui demitido de onde eu trabalhava, que a arte me resgatou. Foi quando uma amiga me chamou para fazer parte de um grupo de teatro amador. Era um grupo de teatro musical e até então, eu nunca tinha estudado canto separado, já tinha estudado teatro, mas nunca juntado as duas coisas. E ali eu já tinha ido para psiquiatra, pois eu tive depressão. Foi a arte que me trouxe de volta e aí eu criei esse caminho que me fez entender o quanto aquilo fazia parte de mim e era realmente a minha força motriz.
OA: Falando sobre o Peter, qual foi o elemento, quanto às características de personalidade dele, que você encontrou maior dificuldade para inserir na atuação?
DG: Foi imprimir a idade dele. Porque eu, naturalmente, tenho uma energia mais nova do que a minha idade. E eu vinha de experiências de fazer personagens que são, ou da minha idade, ou mais novos. O Peter foi a primeira pessoa que me “jogaram no colo”, que é mais velho. Caracterização ajuda, é claro, mas foi o que mais caiu na cabeça, a questão de como colocar isso no corpo, como pôr isso na personalidade, que é um homem mais velho, porém não tão distante de mim. Porque quando é muito mais velho, ajuda, eu acho. Fica algo que você consegue buscar referências mais fáceis. Cai um pouco no caricato, mas é mais fácil fazer alguém bem mais velho. O mais velho que está no meio do caminho, você tem que trabalhar e ir descobrindo nuances, que são muitas, por si só. A idade dele, para mim, foi um desafio.
OA: Existe alguma figura (personagem ou ator/atriz) em quem você se inspira?
DG: Para o Peter, eu me inspirei em pais. Porque a figura dele é ser um pai. Por mais problemático que ele seja, e com todas as suas nuances, ele é um pai. E ele é um pai que ama sua esposa, que ama seu filho, então em condições normais, isso são coisas que, para ele, são importantes, embora meio quebradas, mas fazem parte dele. Eu fui olhar o meu pai, pais de amigos, pais da ficção. A gente leu Nelson Rodrigues, assistiu alguns filmes antigos para trazer isso.
O engraçado das referências é que elas são importantes, mas elas levam para um lugar que eu não queria trazer. Por exemplo, a dramaturgia de Nelson Rodrigues é, em essência, muito pesada. A chance da sua atuação cair naqueles moldes, que são muito bonitos, não estou me afastando deles, demanda uma profundidade que eu queria não me prender a ela. Eu queria que ele fosse um “meio caminho” entre o pesado da dramaturgia e algo como “eu conheço esse cara”, trazer ele mais perto do público. Porque isso é teatro musical, que tem essa característica de que se for para um lado muito pesado, você distancia o público. E aí você não justifica porque um personagem tão tenso está cantando.
A dramaturgia do Teatro Musical é diferente quanto à dramaturgia tradicional, não querendo separar as duas, porque elas têm raízes iguais, mas em algum momento você não consegue mais se expressar e você passa a cantar, dançar, a performar. O ator que tem essa estrutura clássica da dramaturgia, chame você de Stanislavski, Brecht, que são os mais tradicionais, ou o pessoal que estuda no Brasil as nossas referências, esse pessoal trabalha com o extenuante das capacidades e das possibilidades dramatúrgicas, que poucas vezes caem no canto.
Então, você não chega até lá. Como você vai justificar? Se você tem tudo dentro de você, das suas ferramentas de interpretação, do seu estudo, da sua pesquisa e da sua profundidade dramática no palco? Então, ele está no meio do caminho entre esses dois mundos. Ele precisa ter a profundidade exata para que, em algum momento, ele passe a cantar. Ele tem que ser profundo o suficiente para passar a expressar isso da maneira que o Teatro Musical está acostumado. A gente não tem um personagem que seja tão profundo nessas questões, porque ele não canta, não passa para essa fase. Ele exprime de outra maneira, usa outros recursos.
Eu assisti “De Repente, No Último Verão”, que é baseado em Tennessee Williams, e o personagem de Montgomery Clift foi um dos caras que eu mais guardei no inconsciente. Ele é uma pessoa com seus conflitos, mas muito natural. Foi isso que eu fiz, na naturalidade. Meu pai é muito fofo, eu usei ele também. Ele tem questões, mas não são essas questões. Meu pai não faz nada sem falar comigo, então ele é zero essa figura. Ele é muito fofo, muito solícito, mas gestual, da idade, do peso nas coisas.
OA: Falando sobre “Segredos Sussurrados ao Silêncio da Chuva”, como você enxerga a importância do seu trabalho como impacto, especialmente no público LGBTQUIA+ e quanto ele afeta na sua própria vida?
DG: A gente, por existência, é resistência. A gente é sempre um ser político, em tudo o que a gente faz. Eu acho que, se a gente tiver consciência disso, já é meio caminho andado. A maneira como eu falo, como eu penso, o que eu exponho nas minhas redes, as decisões que eu tomo no meu dia a dia, por menores que elas sejam, de quem eu vou consumir alguma coisa, seja artisticamente, seja no geral, eu, pelo menos, estou pensando nisso sempre. Principalmente no momento em que a gente vive, falou que a empresa apoiou Bolsonaro ou até hoje tem o corpo diretivo que vai fazer jantar com ele, eu paro de consumir. Às vezes eu caio em ciladas, até a gente entender o que aconteceu, você está consumindo e fala “putz, não acredito!”. É muito difícil a gente separar o joio do trigo. Mas é no sentido de que a gente precisa estar “atento e forte”. É difícil, mas a gente tem que tentar.
A gente vai tentando e se desvinculando, se desvencilhando, abrindo os olhos. É um processo. Ninguém nasceu desconstruído. A gente está sempre aprendendo. É o que eu sempre falo, estar atento e forte: a gente vai aprendendo juntos, vai desconstruindo juntos, descobrindo que dá pra ser feito juntos, se ajudando e se apoiando. E ainda como artista, isso potencializa mais ainda! Um dos meus pilares que eu sempre bebo da fonte é a Rita von Hunty, maravilhosa em todos os seus aspectos, suas frentes de trabalho. Ela sempre fala: “neutro, só shampoo de bebê”. Artista ainda mais, não existe neutralidade. O artista sempre está defendendo alguma coisa. O artista queer, o artista LGBTQUIAP+ tem que estudar muito mais, se prostrar diante da sociedade, diante dos seus pares, muito mais sobre aquilo do que ele está falando, aquilo que ele está representando.
Eu venho de um lugar de muito privilégio, sou cis, sou branco, isso já me coloca em um lugar à frente de um monte de gente. Eu tenho que saber no que posso ajudar nas outras causas, como eu posso trazer isso para uma representatividade maior, embora não faça parte da representatividade. A mesma coisa com o feminismo, tenho questões sobre se existem homens feministas ou não, mas existem homens que apoiam o feminismo, então a gente está aqui fazendo isso para ajudar, para mostrar um outro caminho, um outro diálogo.
Se a gente não é, a gente tem que ajudar a fazer com que os outros não sejam mais o lado ruim da moeda. Também quanto ao racismo, nosso exercício é ser anti-racista, é ser anti-fascista. Nunca saberemos o que é ser, de fato, negro, eu nunca saberei o que é ser, de fato, mulher, mas eu sei o que é ser gay. Então, dentro das causas, o que a gente conseguir, abraçá-las e se unir, falar sobre inclusão, sobre diversidade e equidade, a gente pelo menos ajuda um pouco. Não é a função, mas já ajuda.
OA: Qual é, para você, o aspecto mais desafiador na sua carreira como ator?
DG: A minha vida é conciliar. Eu vivo “a vida dupla do agente da KGB”. Hoje em dia, muito mais. Onde eu estou na minha vida hoje, meu trabalho CLT me consome de uma maneira que até um ano atrás não era assim. Na pandemia isso se intensificou, por a gente estar em casa, o que é bom por um lado, mas pelo outro, limites e a jornada de trabalho se perderam um pouco. A gente fica quase 24 horas conectado, o que deixa a gente cansado mentalmente. Como eu rendo no meu trabalho, como eu desvinculo disso e vou para a minha carreira artística. Procuro estar o mais aberto e disponível possível.
É difícil, porque você está cansado e começa a carregar coisas que não são dali, mas eu tento, sempre tentei e acho que consigo equilibrar bem. Se eu for falar só artisticamente, acho que não é nem um desafio, é uma responsabilidade. É não parar de estudar. Isso demanda você ser organizado, demanda você ser dedicado, e tudo bem você não ser 100%, a gente nunca vai ser 100%. Mas se você tiver essa mentalidade de que você precisa estar sempre se atualizando, é um esforço, um desafio com certeza, mas também já te coloca em um outro patamar. A gente tem que saber entender também quando a pessoa não consegue por outras questões.
OA: O que você diria para pessoas que, assim como você, também têm o objetivo de viver do que elas amam e estão buscando isso?
DG: Não desista. Está difícil, a gente está indo para um agravamento da pandemia e de outros surtos, com tudo sendo adiado, não sabemos como vai ficar. Infelizmente, para o artista, ele acabou passando a ter que topar qualquer coisa e isso foi puxando os valores cada vez mais para baixo. É muito fácil querer desistir e fazer outra coisa. Você pode e deve fazer outra coisa, você precisa se variar e diversificar, não em um sentido de coach (risos). Você precisa ser esperto, saber que não é uma coisa só, o trabalho não te define.
E aí você vai descobrir uma coisa que é agradável, mesmo que não seja o que você quer fazer da vida, mas de repente é algo que você consegue fazer para te dar um sustento. Às vezes é um negócio que você consegue fazer que te dá um sustento, uma carreira, até um norte para você investir em você mesmo.
Eu vejo gente trabalhando em loja e está tudo bem! E curte, fala “eu gosto, venho aqui, é um tempo que às vezes eu consigo me desligar dos meus problemas da vida, junto minha graninha, estudo no balcão, leio um texto no balcão, ou me distraio porque estou atendendo gente…”, milhões de coisas. Está difícil, isso eu vou bater na tecla, em todos os meios, todos os mercados está difícil. Mas sobreviva e não desista. Arranje maneiras de não desistir. Eu sempre parto do pressuposto de que o caminho mais fácil, não é o caminho certo. Mas não desista!
OA: Vem aí…
DG: Agora eu já posso falar, porque tem contrato assinado (risos). Eu estou em um projeto de série com três curtas-metragens e um longa-metragem. Por enquanto, a gente gravou os dois primeiros. É uma história na qual eles querem captar três diferentes pontos de vista sobre relacionamentos abusivos. Então são três diretores diferentes, contando a mesma história. O primeiro foi uma versão “Manoel Carlos” da história, uma coisa super chique, uma luz mais publicitária, um lado bem mais tradicional do relacionamento. Agora teve uma versão bem louca, bem abstrata.
O terceiro, ainda não sei, pelo menos a produção deve saber, é outro diretor. O longa vai tentar casar essas três linguagens, tentar expandir o “multiverso” do relacionamento abusivo, além de aumentar essa história e contar os detalhes que nos curtas não entraram. O longa é sempre um dia, então será um dia na vida desse casal, o dia em que dá problema. O “Segredos” tem uma apresentação na campanha de popularização do Teatro, no final de janeiro, em Campinas, já que a produtora é de lá. Todo começo de ano, a cidade tem essa campanha, no ano passado não teve, mas espero que não cancelem, pois é uma campanha muito legal de décadas, desde quando eu era criança eu sei dessa campanha. Eles colocam várias peças nos teatros da cidade a preços populares. É uma oportunidade muito legal de as pessoas terem contato, popularizar o acesso à cultura, fazer as pessoas voltarem ao Teatro, principalmente agora.
Depois, a peça deve voltar a São Paulo em algum momento. Estamos batalhando para isso. Está difícil pelas pautas e muita coisa voltando. É bom, mas aumenta a concorrência dos teatros. Por enquanto é isso. Eu estava em dois projetos, que não poderei realizar devido à agenda de trabalho fora do campo da atuação, que seriam agora em fevereiro.
Também tenho um blog, onde posto alguns pensamentos e, com a ajuda de uma amiga, pretendo reunir essas anotações e ver no que dá.
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