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‘Fina Estampa’: com texto ultrapassado e reprise mais assistida do que a exibição original, o que mudou na TV de 2011 para 2020?

Griselda ( Lilia Cabral ) chama Tereza Cristina ( Christiane Torloni ) para rezar pela saúde de Patrícia.
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Após seis meses, chega ao fim nesta sexta (17) a reprise de “Fina Estampa”, escolhida no longínquo março deste ano por causa da suspensão das gravações de “Amor de Mãe” por conta da pandemia de coronavírus.

Desde a sua escolha, os usuários das redes sociais se manifestaram contra e a favor da reexibição da novela de Aguinaldo Silva. Para uns é motivo de risada, já para outros é tido como uma “bomba radioativa” e o para audiência é sucesso, assim como na sua exibição original entre 2011 e 2012. A trama irá fechar com uma média de 34 pontos, superando os índices de nove novelas exibidas no horário das nove nos últimos seis anos, mais precisamente desde “Em Família”. As exceções estão apenas com “A Força do Querer” e as tramas de Walcyr Carrasco “O Outro Lado do Paraíso” e “A Dona do Pedaço”.

Se formos mais a fundo e fizermos a conversão dos pontos de ibope de hoje para os de 2011 e 2012, a reprise de “Fina Estampa” sai de cena mais assistida do que a sua exibição original em São Paulo, a principal praça do Ibope, pois é o seguinte: entre 2011 e 2012, cada ponto de Ibope era equivalente a 60.000 domicílios, sendo assistida por 2.340.000 domicílios e com a média geral de 39 pontos (a maior da década de 2010 no horário das 21h). Em 2020, cada ponto vale 74.987 domicílios, sendo assistida por 2.520.313 domicílios e com a média geral de 33,6 pontos (até o fechamento da matéria em 17/09 considerando as médias até 15/09).

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Griselda ( Lilia Cabral ) e Tereza Cristina ( Christiane Torloni ) – Foto: Alex Carvalho/Globo

Apesar de sua alta audiência, a sua reexibição não conseguiu agradar a uma parcela do público que a acompanhava diariamente no Twitter. Foram duras críticas a forma estereotipada de Crô (Marcelo Serrado) e a abordagem da violência doméstica entre Celeste (Dira Paes) e Baltazar (Alexandre Nero), a forma machista que são as falas e comportamentos de Pereirinha (José Mayer), Enzo (Júlio Rocha) e Antenor (Caio Castro) e isso sem contar em seu roteiro que alguns momentos não tinham senso. Mas a justificativa é a seguinte, no qual chega a meta deste texto: a TV entre 2011 e 2012 era diferente do engajamento e consciência social em que teve ao longo dos anos seguintes.

Crô e a questão LGBT: o personagem querido de 2011 e 2012 é tido como ranço

Começando por essa questão, “Fina Estampa” veio em uma época que a questão de personagens LGBTs ainda eram relacionados a comédia em novelas. Do tempo de 1 ano antes de sua estreia até o período de seu término em março de 2012, as exceções estão em “Insensato Coração”, a trama anterior das 21h que abordou o casamento entre dois homens e um personagem sendo morto por homofobia apesar de alguns momentos cair no humor caricato com o Roni (Leornado Miggorin), “Ti ti ti” no ano anterior que abordou o amor um casal gay e “Amor & Revolução”, trama de um SBT longínquo do que é hoje e que teve o primeiro beijo entre pessoas do mesmo sexo em teledramaturgia brasileira, com as personagens Marcela (Luciana Vendramini) e Marina (Gisele Tigre). Apesar da cena progressista, a emissora não deixou ir ao ar o segundo beijo do casal

As demais, assim como a trama de Aguinaldo Silva, abordaram os LGBTs relacionados a comédia, como em “Morde & Assopra” que o Élcio (Otaviano Costa) se traveste de Elaine para fugir da polícia e acaba despertando a paixão do Dr. Eliseu (Paulo Goulart em seu último trabalho em novelas) e do Sargento Xavier (Anderson Di Rizzi), com quem termina junto. Na mesma trama ainda teve o Álvaro (André Gonçalves) que assim como Crô era um personagem gay estereotipado e que acaba até pensando em se casar com Celeste (Vanessa Giácomo), após a engravidar em uma noite que dormiram juntos. Porém, Celeste é abandonada no altar e Álvaro foge com Josué (Joaquim Lopes).

Ainda no horário das 19h contemporâneo a exibição de “Fina Estampa”, teve “Aquele Beijo” de Miguel Falabella com a Ana Girafa (Luís Salém) seguindo uma marca que até então era comum no horário: de ter travestis em papeis cômicos.

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Indo para o horário tardio e estreante naquele ano, o remake de “O Astro” às 23h trouxe ainda o bissexual Felipe (Henri Castelli) que vive uma relação implícita com Henri (João Baldasserini).

Saindo das novelas, ainda teve a série “Macho Men” em que o protagonista Nelson (Jorge Fernando) deixa de ser um cabeleireiro gay caricato e vira hétero após um globo de discoteca cair em sua cabeça em uma pista de dança. Por mais que a série de Fernanda Young e Alexandre Machado não quisesse soar homofóbico, a história com certeza seria cancelada pelo tribunal da internet e pela comunidade LGBTQIA+.

Violência doméstica e romantismo = não se combina mais nas tramas de hoje

Um ponto que é destacado na trama é o arco envolvendo Celeste e Baltazar. Na época, o núcleo foi bem discutido pela sociedade, chegando até a aumentar o número de denúncias de violência doméstica em setembro de 2011, conforme uma reportagem do UOL na época. Conforme o passar da trama, o casal acabou se reatando, Celeste aguentou o marido machista e ao final terminaram juntos, indo contra a ideia do autor. Para quem não se lembra, a ideia era de que Baltazar fosse o amante secreto de Crô, mas isso não acabou acontecendo por causa da retaliação que poderia ter. Em contrapartida, Crô termina com Baltazar no filme focado em sua vida após Tereza Cristina (Christiane Torloni) sumir e ser dada como morta.

Mas a sociedade de hoje não tolera mais que a vítima retome ao agressor em produções audiovisuais e com toda razão, diga-se da passagem. Apesar da abordagem ter surtido efeito na época, ela não deve ser usada como exemplo na história da teledramaturgia brasileira. Em contrapartida, a sociedade ainda tava começando a discutir as questões sociais que ganharam engajamento cada vez mais com o avanço da internet. Um exemplo pode ser usado na trama que estava em cartaz no “Vale a Pena Ver de Novo” na época, “Mulheres de Areia”. Na novela de Ivani Ribeiro, todos os personagens masculinos soam machistas, sem exceção, e isso na época não engajou um ‘tweet’ da forma como seria engajado nos dias atuais, que não aceitaria o mocinho Marcos (Guilherme Fontes) dando tapas em Ruth (Glória Pires), achando que era a sua irmã gêmea Rachel.

A prova que a sociedade não aceita mais está com o que aconteceu em “O Outro Lado do Paraíso”. Durante a trama, Clara (Bianca Bin) acaba se reaproximando de Gael (Sérgio Guizé) mesmo após as agressões e até estupro sofridos. Quando surgiu a possibilidade deles voltarem a ter um romance ou até mesmo terminarem juntos, os telespectadores começaram a reclamar e não aceitaram e deu certo: Clara terminou com Patrick (Thiago Fragoso), enquanto Gael conhece Taís (Vanessa Giácomo) enquanto a defendia de uma agressão do marido da personagem.

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Gael ( Sergio Guizé ) e Clara ( Bianca Bin ) em “O Outro Lado do Paraíso”. Foto: Divulgação/Globo

Humor de “Fina Estampa” é o humor envelhecido, assim como de quase todos os humorísticos da época

Outro ponto que se destacam nas críticas feitas é o humor abordado na trama, que soa como envelhecido e preconceituoso. Mas é, atoa que até algumas cenas deste tipo chegaram a ser cortadas na reexibição de 2020. Contudo, a sociedade de 2011 e 2012 ainda os aceitavam e o reflexo disso está nos humorísticos paralelos a sua exibição.

Além do já citado “Macho Men”, o humor da TV da época coleciona alguns programas que hoje seriam motivos de cancelamento, a começar pelo “Zorra Total”. O jovem posta na rede que sente saudades desta fase com certeza não deve se lembrar de como era machista, homofóbico, xenofóbico, racista e assim vai, além de sem graça. Em 2011, o humorístico da Globo era ambientado em um metrô que representava o Brasil e comandado pela Dilmaquinista (Fabiana Karla em uma sátira a presidenta Dilma). Os personagens que se destacavam eram Valéria (Rodrigo Sant’Anna) e Janete (Thalita Carauta). Valéria era uma travesti e que chamava a sua amiga Janete de babuína em uma forma racista. Em um momento do quadro, Janete era assediada por um homem que vinha por trás, em uma clara cena que hoje é considerada crime por conta da Lei de Importunação Sexual (n. 13.718/18). Na época, era tido como se Janete tivesse gostando e Valéria incentivada. Alguns grupos feministas e partidários e o Sindicato dos Metroviários de São Paulo chegaram a se manifestar contra a exibição do programa, mas na época não teve efeito e aconteceu o inverso: o quadro acabou ganhando mais tempo no ar, chegando a ter 1/3 da duração de arte do programa.

Valéria ( Rodrigo Sant’Anna ) e Janete ( Thalita Carauta ) – Foto: Alex Carvalho/Globo

Indo para outras emissoras, é inevitável não falar dos programas de humor que estavam em alta na época: “Pânico na TV” e “CQC”. O programa que ainda era exibido na Rede TV nem precisa comentar de como é que era. O “CQC”, apesar de apresentar um tom mais sério, ainda tinha em sua essência elementos que soavam machistas, a prova disso foi a temida piada que o apresentador Rafinha Bastos fez a Wanessa Camargo, de que “comeria ela e o bebê dela”. Isso rendeu diversas capa dos principais de sites, um processo movido pela cantora e o afastamento do jornalista do programa e consequentemente o seu pedido de demissão da Band.

Ainda em sua fase humorística, o “Legendários” tinha um personagem que soava preconceituoso, a Dona Peida, a representação de uma mulher negra acima do peso feita pelo Bruno Sutter, com direito a blackface.

Dessa época não escapam nem os humorísticos da MTV. Apesar de fazer falta a TV atual, o “Furo MTV” que fazia sarro das notícias do dia também tinha trocadilhos que não seriam aceitos na sociedade atual. Na época mesmo, o humorístico chegou a ser processado pelo apresentador Marcelo Bandeira da TV Gazeta por conta dos apresentadores da atração Dani Calabresa e Bento Ribeiro os terem se referido como ”a bicha que trabalha com Claudete Troiano”.

Na mesma linha seguia o “Comédia MTV”, o programa de esquetes em que tinha em seu elenco o Marcelo Adnet e a Tatá Werneck. Naquele o ano, o programa se envolveu em uma polêmica com a “Casa dos Autistas”, uma sátira a “Casa dos Artistas” no qual mostrava a rotina diária de autistas. O que era pra ser engraçado, não foi e saiu caro: a MTV foi condenada a pagar 40 mil reais aos pais de duas crianças autistas que se sentiram ofendidos pela esquete.

Apesar de tudo, a sociedade de hoje começou a dar sinais de mudança naquela época nas redes sociais

“Fina Estampa” pode até ser uma novela elogiada pela Dilma, presidenta da época e não ter tido engajamento de críticas negativas na internet naquela época, porém ali já era um demonstrativo no potencial do que as redes sociais poderiam fazer nos anos seguintes.

Quem acompanhou a trama pelo Twitter há quase 10 anos atrás só via os usuários da rede comentando sobre as cenas e o autor Aguinaldo Silva postando “Fom Fom” a cada vez que a novela batia recorde de audiência. Paralelamente a trama a temida rede social teve um papel importante no “BBB 12”, exibido após a novela entre janeiro e março.

Para quem não se lembra, a edição daquele ano ficou marcada por um suposto estupro que haveria acontecido entre Daniel e Monique após uma festa no qual a sister estava bêbeda e o seu colega de confinamento teria se aproveitado da situação. A internet começou a comentar sobre o suposto crime, no qual a edição seguinte do programa acabou ignorando, com direito ao comentário “o amor é lindo” do Pedro Bial. Mas o caso foi aumentando ao ponto da Polícia Civil do Rio de Janeiro abrir uma queixa-crime e ir a casa nos Estúdios Globo ouvir os participantes. Ambos negaram qualquer relação não consentida e a Daniel acabou sendo expulso. O processo em seguida foi arquivado.

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